A polêmica sobre a lei que torna escolas ‘essenciais’ para abrirem mesmo no auge da pandemia
Educação

Escolas devem ficar abertas para o ensino presencial mesmo nos piores momentos da pandemia? Esse é o cerne de um debate em torno de um projeto de lei que classifica escolas como “atividades essenciais” e foi aprovado na noite de terça (20) na Câmara dos Deputados. O texto, que proíbe a suspensão de aulas presenciais durante pandemias e calamidades públicas, segue agora para o Senado.

Embora sejam enormes os prejuízos à educação e ao desenvolvimento infantil depois de um ano de escolas fechadas, o projeto de lei enfrenta resistência entre muitos especialistas em educação, inclusive entre os defensores da volta às aulas presenciais, por não levar em consideração parâmetros epidemiológicos ao definir a reabertura das escolas – o que poderia, em tese, piorar a situação pandêmica do país.

Entre 1,5 bilhão de crianças do mundo que tiveram seu ensino presencial de alguma forma interrompido pela pandemia, as brasileiras estão entre as que enfrentam mais tempo de escolas, em sua maioria, fechadas.

Uma projeção de março do Banco Mundial apontou que pode aumentar de 50% para 70% a proporção de alunos brasileiros no ensino fundamental que não conseguem ler ou compreender textos simples.

O Unicef, braço da ONU para a infância, calcula que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros tiveram seu direito à educação negado em 2020, pelas dificuldades de implementação do ensino remoto.

“Devemos ter a educação como serviço e atividade essenciais, não podendo ser renegada em face de problemas momentâneos que a sociedade esteja enfrentando”, afirmaram as deputadas Paula Belmonte (Cidadania-DF) e Adriana Ventura (Novo-SP), duas das autoras do projeto de lei 5595/2020.

“Absurdo é quando presenciamos diariamente governantes locais – governadores e prefeitos – elencando as mais diversas e variadas atividades como essenciais, mas não a educação”, declararam, segundo a Agência Câmara.

O projeto aprovado só prevê a suspensão de aulas “se houver critérios técnicos e científicos justificados pelo Poder Executivo quanto às condições sanitárias do Estado ou município”, embora esses critérios não estejam detalhados.

‘Reabertura não pode ser a qualquer custo’

No entanto, essa reabertura “a qualquer custo”, no momento em que o Brasil vivencia os números mais altos de mortes por Covid-19 e colapso nos sistemas de saúde, também é vista como um risco para a comunidade escolar e para a sociedade como um todo.

Na ausência de critérios específicos para as “situações excepcionais” de fechamento das escolas, “pese a boa intenção, nosso entendimento é de que (o projeto), sendo apresentado no pior momento da pandemia, está descompassado do contexto maior do Brasil”, diz à BBC News Brasil Olavo Nogueira, diretor-executivo da organização Todos Pela Educação.

Nogueira argumenta que o Todos Pela Educação tem sido “vocal em favor da reabertura das escolas” – por conta do impacto brutal que a situação atual tem tido sobre as crianças -, mas só se houver critérios e condições adequados.

“O risco é forçar uma reabertura em locais onde os indicadores de saúde não permitem”, prossegue Nogueira. “Os países que conseguiram reabrir suas escolas com segurança o fizeram em um cenário de razoável controle (da situação epidemiológica).”

Um fator complicador, diz Nogueira, é a ausência de parâmetros e coordenação nacionais por parte do governo federal, que ajudassem a balizar estratégias de abertura e fechamento de escolas a depender das circunstâncias em cada local.

“Os EUA, por exemplo, usam os CDCs (centros de controle de doenças), que definem as etapas e marcadores para avaliar quando é muito arriscado reabrir as escolas. Aqui, alguns Estados tentam por si próprios (…), mas mesmo neles existe uma ausência de indicadores e de comunicação transparente de quando (a reabertura) passa a ser perigosa ou não.”

“O país errou muito no último ano”, opina Nogueira. “Quando houve espaço para reabrir as escolas (no ano passado), priorizou-se reabrir comércios e serviços não essenciais. Poderia ter havido a reabertura, e isso não foi feito. Agora, tenta-se recuperar o atraso no pior momento da pandemia. É um descompasso entre o que as evidências mostram e o poder público.”

Escolas com protocolos costumam ser ambientes seguros

O debate é, de fato, um dos mais relevantes e urgentes a serem feitos pelo país. Muitos pediatras, por exemplo, se mobilizaram em defesa da reabertura das escolas, ressaltando os impactos sofridos pelas crianças em seu desenvolvimento cognitivo e socialização – e apontando, também, a falta que tem feito a escola em prover segurança física e alimentar no caso dos estudantes mais vulneráveis.

Estudos feitos em ambientes escolares ao redor do mundo apontam que escolas que seguem protocolos sanitários rígidos – com ampla ventilação natural dos ambientes, uso de máscaras, distanciamento social e restrições à capacidade máxima de cada espaço – são ambientes de relativa segurança contra a propagação de vírus entre crianças e professores.

Um estudo feito na França, por exemplo, identificou que infecções diversas entre crianças se mantiveram em níveis muito mais baixos do que o normal durante o fechamento das escolas, mas se mantiveram baixos quando essas reabriram ao mesmo tempo em que o restante da sociedade se manteve sob rígidas normas de lockdown promovidas pelo governo.

Isso levanta ao menos três questões importantes: primeiro, que a segurança dentro da escola depende também da circulação do vírus fora dela – e, portanto, oscila conforme os índices de transmissão comunitária e o comportamento dos adultos na sociedade como um todo.

Segundo levantamento de outubro de 2020 da Organização Mundial da Saúde (OMS), os estudos feitos até então apontavam que, nos surtos de identificados dentro de escolas, “na maioria dos casos de Covid-19 em crianças a infecção foi adquirida dentro de casa”, e não na escola em si.

“Nos surtos escolares, a probabilidade maior era de que o vírus tivesse sido introduzido por adultos”, prossegue o documento.

Em segundo lugar, o exemplo de países que conseguiram manter suas escolas reabertas indica que é necessário haver um programa constante de testagem e rastreamento de casos ativos de Covid-19, para evitar que eles se convertam em surtos, além de condições adequadas para a implementação de medidas sanitárias nas escolas.

São pontos em que o Brasil patina, apontam três pesquisadores do Departamento de Ciência Política da USP, Lorena Barberia, Luiz Cantarelli e Pedro Schmalz, que estão monitorando as políticas de educação implementadas pelas redes públicas estaduais e municipais durante a pandemia.

“A volta às aulas presenciais foi vendida como tendo sido cercada de protocolos e cuidados, mas olhando para as políticas de distanciamento nas capitais e nos Estados, a gente percebeu que a fiscalização sempre foi muito ruim, e decisões nem sempre foram pautadas por questões científicas e pelo melhores protocolos, e sim por interesses econômicos”, diz Cantarelli à BBC News Brasil.

“A retórica de que os retornos (na rede pública) estão cercados pelos melhores protocolos não se sustenta.”

Sobre a testagem, uma questão que preocupa Lorena Barberia é que, em locais como a cidade de São Paulo, o teste sorológico é o que tem sido mais usado nos inquéritos de situação epidemiológica escolar.

Fonte: G1