Médicos que falam russo
Artigo de Opinião
Juliana 23 de julho de 2024

 

A Folha de São Paulo noticiou (edição de 22 de julho de 2024) que há contingente expressivo de brasileiros estudando Medicina na Rússia. Viajaram 11.000 km e, do outro lado do mundo, convivem com sensações térmicas polares. Estagiam em hospitais que remontam ao tempo da União Soviética. A matéria enfatiza dificuldades pelas quais esses brasileiros têm passado. Entre elas, a proximidade com a Ucrânia, isto é, para quem estuda em Kursk. Estão longe de casa, e longe de nossos problemas internos. Não sei se lá estudam medicina tropical. As aulas são proferidas em inglês, mas certamente precisam dominar rudimentos de russo para o dia a dia. São nossos médicos que falam russo.

Há também brasileiros estudando Medicina na Argentina, no Paraguai, na Bolívia e até na República Checa. Ao que consta, Pedro Juan Caballero, no Paraguai, conta com nove faculdades de Medicina. A cidade é pequena, são 116 mil pessoas. É de pasmar: há doze mil brasileiros que frequentam as faculdades médicas dessa cidade fronteiriça. Há registros de situações alarmantes. Em 2022 uma estudante brasileira de Medicina foi encontrada morta em Cochabamba, na Bolívia. Ao que consta, haveria suspeitas de homicídio.

Não é difícil imaginar o quanto o Brasil perdemos com esse êxodo. Perdemos empregos. Professores e demais profissionais do ensino médico são alijados dessas oportunidades: os alunos não estão aqui. Em torno de uma faculdade de Medicina desenvolve-se uma vida própria, com fortíssimo incentivo às economias e populações locais, e com a multiplicação de empregos indiretos: as faculdades, de igual modo, não estão aqui.

Perdemos receita tributária. Faculdades recolhem vários tributos (federais, estaduais e municipais). Não se sabe se esse fator já foi levado na ponta do lápis pelos ocupantes do Bloco P da Esplanada dos Ministérios em Brasília (Ministério da Fazenda). Transferimos para outros países esse poder de extração fiscal (direto e indireto), que certamente aproveitam. Paradoxalmente, nesse caso, não exportamos tributos. Exportamos capacidade arrecadatória: os contribuintes não estão aqui.

Os estudantes que optam por educação médica no exterior expõem-se a impactos financeiros diretos. Recolhem mensalidades (ainda que supostamente inferiores às mensalidades cobradas no Brasil), gastam com hospedagem, alimentação, roupas, transporte, livros. Esses valores (que são expressivos) são subtraídos da economia brasileira. É um presente que nossa miopia institucional oferece aos hospedeiros de futuros médicos.

Do ponto de vista econômico oferecemos um trade-off que nos garante um péssimo de Pareto. Agradecemos o auxílio à nossa incompetência, remunerando com um mercado consumidor que alijamos, por falta de planejamento e de racionalidade. Como afirma um notável brasileiro que leciona em Harvard (Roberto Mangabeira Unger) falta-nos imaginação institucional. Acrescento: sobra-nos incompetência e paciência para discutirmos consequências, e não causas.

Se formados os futuros médicos, e não voltarem, perdemos capital humano (nem sei se essa expressão ainda é politicamente correta). Se voltarem, deverão se submeter a uma série de exames de controle de qualidade. Uma inversão. Com o estudante brasileiro que estuda no Brasil a preocupação é maior com a entrada na faculdade. Esquece-se o depois. Com o estudante brasileiro que estudou no estrangeiro a preocupação é com o depois; não importa o antes.

Há inegável perda de alunos potenciais. A entrada no sistema público de ensino de Medicina está saturada, nada obstante vários modelos de cotas e de outras louváveis iniciativas. O sistema de ensino médico privado vive interminável insegurança jurídica que decorre da multiplicação de padrões decisórios (para novos cursos e para aumento e vagas) que incentivam a judicialização. E ainda que saibamos que todos somos iguais perante a lei, não somos iguais perante a jurisprudência.

Levamos o problema para o Judiciário, que é convocado para fazer políticas públicas ante a ineficiência do protagonista de plantão. Perde-se energia incomensurável traduzindo-se problemas econômicos (de concorrência, de livre-iniciativa e de alocação de recursos) para o juridiquês. A turma de Têmis (nós advogados) então temos que mimetizar o problema real: discutimos portarias, validade, antinomias, lacunas, repristinação. É todo um repertório coimbrão e desgastado para a discussão de um problema presente e angustiante. Enquanto isso afasta-se ainda mais da realidade, discutindo-se o óbvio: conceitos de município, de região de saúde, de numerologia de leitos SUS.

A questão deixa de ser a possibilidade que o empreendedor tem de investir e oferecer serviços. Bons ou ruins, há uma inegável mão invisível que tudo regula, queiramos ou não, gostemos ou não. O filósofo e economista de Edimburgo, Adam Smith, errou muito, mas acertou muito também. Há uma liberdade inerente à ação humana que resiste a qualquer forma de estrangulamento.

Nesse faroeste conceitual caboclo também atiram os puristas. Alguns, mais puros ainda, sustentam postulados que a realidade nega peremptoriamente. Afirmam que estatisticamente temos muitos médicos. Pena. Não se lembram que no mundo há duas grandes mentiras: as mentirinhas e as estatísticas.  Invocam também o controle de qualidade de ensino. Iludem-se, achando que controlam a qualidade de ensino no estrangeiro com provas aplicadas a mancheias no Brasil.

Um atendimento no SUS (ainda que existente, não há como negar) é exercício de loteria misturado com um pequeno milagre, que o direito canônico certamente não reconhece. Em todo lugar, a mesma cantilena: não há médicos. Aguardemos então que voltem do exterior…

Podem me condenar, afirmando que não sou médico ou especialista em saúde, e que por isso não tenho lugar de fala. No entanto, se fosse assim mesmo, somente canhotos poderiam discutir assuntos de quem não é destro. Todos que acompanhamos esse gravíssimo problema compreendemos que há uma luta feroz para manutenção de situações consolidadas, edulcorada por argumentos que tomam a parte pelo todo, e que parecem confundir Hipócrates com hipocrisia.

Mantida a situação atual, sob o postulado fragilíssimo de que há controle, perde-se de vista um outro postulado de direito administrativo, relativo à teoria da captura, no contexto do qual o regulado controla o regulador. O momento exige que se deponham as armas, que se construam alternativas factíveis que enfrentem o problema real, que é de saúde pública, e que exige médicos e profissionais de saúde.

Ao mesmo tempo, o País tem obrigação de acolher e de educar jovens que dão à volta ao mundo na busca de oportunidades de estudo que são desconstruídas por uma burocracia mastodôntica. Diante do fato, a versão empalidece. A saúde, diferentemente da poesia, tem compromisso com a realidade.

 

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy[1]

[1] Livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP. Advogado e professor universitário em Brasília.